sábado, 31 de maio de 2014

IDENTIDADE

 
IDENTIDADE


Que povo eu sou
que senta comigo no sofá
e que assiste a TV embasbacado?

Que povo eu sou
se não sou um
mas muitos nós?

Que povo eu sou
que vai à missa
e pede perdão e pede clemência
e salvação pelos erros
que cometem conosco comigo?

Que povo eu sou
incompleto e perdido?
Que povo eu sou
que vivo olhando
para o meu próprio umbigo
e não me encontro em mim
mesmo nos outros eus?

Que povo eu sou
se não sou eu?

Hideraldo Montenegro

EM TEUS OLHOS FLORESTAS



EM TEUS OLHOS FLORESTAS


Em teus olhos florestas
acendem palavras
demarcadas pelo espanto do invasor

O riso é flor em marcha
d’alma envolvida em dor

Em tua boca o território
se recolhe à taba
e escondes tua nudez
como fosse praga

A cicatriz já foi posta
em tua alma mata
e tua garganta vomita canções
de saudades vindas
e um passado que não deságua

Vontade de ser mãe
terra saudade da ausência
de quem ficou
nos limites extremos
entre a civilização e a farsa
e a falta de pudor
do explorador

A tua tribo se levanta
e o arco alcança
a flecha que não foi
arremessada atinge
o sangue do arremessador
-a submissão do braço
não confessa a fervura
da idéia

E teu canto graúna
assume a bravura
de uma graça que não era
para a guerra


Hideraldo Montenegro

SINAIS

SINAIS
 
Essa alma inscrita no tempo
marca um espaço temporário
paradoxalmente eterno
 
Hideraldo Montenegro

INDECIFRÁVEL

INDECIFRÁVEL


O poema que não escrevi
é feito de carne
tem nome largo
e palavras de forma

O poema que não escrevi
dorme comigo todos os dias
revira meus sonhos
torna-se insônia

O poema que não escrevi
come, bebe, faz sexo
e, às vezes, sai pelo nariz

O poema que não escrevi
vive na lama, no lixo
no luxo, na cama

O que poema que não escrevi
é macho, puta, bicha louca
-desenho que não sai da boca

O poema que não escrevi
é leve, é pluma
pesado tiro
é chumbo, é morte
é casulo, é seda
é sorte que não chega

O poema que não escrevi
se inscreve em mim
como cicatriz
como uma dor, um parto
um sapato apertado

O poema que não escrevi
Jamais escreverei

Hideraldo Montenegro

Epitáfio


Matriz da Igreja Católica de Moreno - PE


EPITÁFIO


Terra, minha terra
eis que me devolvo:
tua poesia, teu ovo.


Devolvo-te os sorrisos escrotos
meus sonhos, meus brotos
minhas esperanças, meus mortos
e, agora, o meu inútil corpo


Devolvo-te o cheiro
destes eucaliptos que acenam
despedidas e boas vindas
aos filhos errantes, retirantes
nesta ilha latifundiária
e agreste de oportunidades
e sonhos delirantes


Devolvo-te tuas verdes colinas
o Societé, a Praça da Bandeira
as rochas, insensíveis, indiferentes
as Sevis, as Brandinas
os servis, a falsidade,
a dor de dente
o dinheiro pouco
para pagar a cantina
teu odor, tua latrina
o futuro e o presente


Devolvo-te o Poço da Nega
o schistosoma
a Travessa da União
a política coma
o engenho, o mel
e a ausência do pão


Devolvo-te o peito,
o sangue derretido, o veio
o clamor, o povo sofrido
o cordão umbilical, o pleito


Devolvo-te teus governantes
que fingem festas, festivais
votos e sorrisos bacanais
embora deixem deserdados
os irmãos natais


Devolvo-te o teu povo
que abre-se fabril
a outros abraços operários
- cicatriz anil
tecida em pele, pavio


Devolvo-te minhas noites,
meus açoites, o salário canavial,
a hipocrisia, a água batismal,
a pia, teu vazio cultural
teu sangue, teu corpo
tua gente, teu sal


Devolvo-te os puteiros
a tua falta de perspectiva,
e a pátria amada sepultada
pela enxada do coveiro
o grito incontido
o escritor, o tinteiro


Devolvo-te tudo
exceto tua moral
Belge Bresiliene
pacífica, morenense
e teu involuntário
abraço final
- cana de açúcar
teu bem, teu mal


A Terra dos Eucaliptos
finalmente receptiva
e acolhedora
abre a sua boca voraz
para me receber
quando não estou
mais nem aí
e não quero saber


Hideraldo Montenegro 

Cicatriz


CICATRIZ

para Graça Graúna

Solano sol
de cada manhã
a cor
do sol
doura a pele
de liberdade
a cada passo
a África
colada
à sola
da caminhada
é asa


Solano sol
poesia e rouxinol
canto da manhã
na cor
desterro e dor
de uma pátria
colada à sola
da caminhada
a cadência
marca
a fala
e fertiliza o chão
por onde a África
passa


Solano sol
da fala
a cor é flor
na marca
a pele
aberta
desabrocha o sorriso
na dor
como uma flor
nasce
no asfalto
como um assalto
um sobressalto
dos pés
na caminhada
que a pele
livre
carregada de sol
fez da cultura
humana
beija-flor


Hideraldo Montenegro


sexta-feira, 30 de maio de 2014

RECIFE

 
RECIFE

Recife e seu banho de águas
Recife mergulhado nas águas
bebe pontes e brilhos
e o sol se reparte nas águas
em estrelas mil
Recife repartido
em pontes que atravessam
a vida da gente

Recife repartido
em gente
-pingente no pescoço
e grito no asfalto
não disfarça a criança
que salta na vida
pelas pontes que unem
todos nós
ao mesmo mangue

Recife sangue
da gente
pelas veias
das pontes
que se constroem
nos rios da cidade
que nos habita

Hideraldo Montenegro